celebração necrófaga

condenado por um passado que não me pertence, continuo a deteriorar-me.
tento alcançar o perdão que nunca me foi destinado até que me convenço que talvez o tenha atingido. fingido.
o que separa o meu corpo danificado e vil dos portões da morte não é mais que uma mentira que me foi concedida por mim próprio. um outro eu. o que escolhe iludir-se.

tenho a dizer que raras vezes fui feliz. se se pode chamar de felicidade à ignorância...
tal como todas as marionetas de Deus cresci para entreter. leia-se sofrer. com o destino de morrer. nada de novo.

não sei se me consola mais achar que carrego o peso de um morto por mero acaso ou porque me foi atribuído um papel especial qualquer neste circo.
estou cansado e quero ir-me embora. não pertenço aqui.

à saída de casa no outro dia encontrei um amigo de infância. não falou para mim.
éramos amigos desde os cinco anos de idade e nunca quebrámos contacto. pensei "será que não me viu?"
que estupidez. como se eu não tivesse passado precisamente diante dele. é claro que me viu. sorriu mas não me sentiu. 
"era um dia frio e estava muito nevoeiro", pensei eu, "talvez não me tivesse mesmo visto". desisto.

quando cheguei a casa liguei a televisão. 
nunca acreditarão no que ouvi.
falava-se do dia mais quente em vinte e um anos. era dia 25 de outubro. foi quando nasci.
olhei em redor. estranhamente a casa estava vazia. olhei-me ao espelho e não me encontrei.
o meu corpo estava gélido. o peso do morto deixou-me e eu senti-me fraco. no chão estava o meu corpo.
nunca fez frio naquele dia. nunca cheguei sequer a ver o meu amigo. 
era o vigésimo primeiro aniversário da minha morte.
o mundo regozijava-se. 

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